Uma carta secreta à minha mãe.

“Mãe,

 

Para começar essa carta, vou começar dizendo que te amo. Sim, amo, amo muito.

 

Todas nossas desavenças e todas nossas brigas serviram para duas coisas, primeiro para eu ver que você é forte e quer meu bem e segundo, para eu ver que eu sou forte e te quero bem.

 

A força que nos une é, desde pequena, escassa, isso é fato. Sempre me senti mais ligada ao papai, assim como você, sempre sentiu-se mais próxima do meu irmão.

 

Mesmo me sentindo próxima a ele nunca me senti parte da família. Nunca foi um sentimento de exclusão, longe disso. Foi um sentimento de não pertencer àquele meio. Todos tentaram me entrosar, enturmar, conversar, me entender… Pelo menos parecem tentar, não que se esforcem muito, mas pelo menos fingem bem.

 

Eu tive sorte com a sua família, todo mundo unido, todo mundo se ajuda e quer ajudar mesmo se não for necessário. A do papai é desunida e eu mal dei atenção à minha avó enquanto ela estava viva, me arrependo disso até hoje. A sua família adotou meu pai tão bem que ele não tem tanto contato com a família dele quanto eu acho que deveria.

 

Se meus tios e primos ainda não perceberam minha sexualidade, só posso dizer que eles são lerdos e cegos, assim como seus amigos. Minha esposa me acompanha a todas as festas já fazem mais de quatro anos e eu sei que você nunca contou e nunca vai contar isso a eles, seria o fim para você ter que admitir ter uma filha lésbica, não é? Prefere fingir que divido a casa com minha sócia e amiga e nunca tocar no assunto: “Minha filha é lésbica.” Assim é para seus irmãos, assim é para seus amigos. Sou sua vergonha e você desconta isso em mim de várias formas e acredito que você não percebe o mal que me faz.

 

Nossas desavenças começaram, talvez, no dia que nasci. Sempre sinto que estamos na defensiva, que nunca estamos relaxadas na presença uma da outra. Eu me sinto armada para uma guerra ao seu lado. Uma guerra contra você e ao mesmo tempo uma guerra a seu favor, pois te defenderei do mundo, mas também me defenderei de você, se preciso for.

 

Quando criança me sentia fora da família, por saber que algo em mim era diferente, por sentir coisas estranhas a determinados assuntos. Quando adolescente tentei me encaixar, mas eu estava dividida. Era uma briga interna entre entender o meu desejo por mulher e o seu desejo de me querer com um homem. Sim esse desejo era seu e nunca me pertenceu, mas eu queria ser uma boa filha e fazia o que vocês queriam.

 

Um dia, quero entender sua vergonha. Um dia quero te perguntar o porquê desse desafeto… O porquê não posso ser amada sem ser tão cobrada… tão humilhada…

 

Mãe, um dia vou cuidar de você como cuidou de mim e pretendo cuidar tão bem quanto cuidou e deixar as feridas quietas, mesmo que elas sejam evidentes e ainda doam. Sim, temos machucados não curados. Você me feriu e eu te feri e nós nos curamos separadas e superamos da nossa forma, isso é, será que superamos?

 

Só posso lhe dizer que eu nunca quis te ferir e acredito que você também não tem essa intenção, é o seu jeito de falar que se importa, é o meu jeito de falar que te amo. Nós, em nossas falhas, nos amamos. Nós, em nossas diferenças, nos enfrentamos. Nós, juntas, não somos. Nós, separadas, existimos.

 

A distância me fez bem e a cada visita tentamos nos comportar como duas adultas, mas sabemos de nossas falhas. Eu sei das minhas com você e você sabe das suas comigo, mas o silêncio prevalece, sempre. As perguntas vagas e cotidianas suprem a intimidade que nunca tivemos.

 

Em seus olhos vejo a decepção, é evidente que não gosta do que sou, do que tenho, de como vivo. Me sinto julgada a cada palavra, a cada gesto, a cada roupa. Não tenho vontade de lhe contar o que se passa comigo, por que teria? Iria ter mais uma crítica como resposta, não é?

 

Gostaria de ter tido apoio em cada sorriso e cada lágrima que derrubei na adolescência. Eu não podia lhe contar que o sorriso era por causa de uma declaração de amor da mulher com quem eu estava flertando. Não pude dizer que a lágrima era por um término de um namoro, ou mais uma briga sem sentido com a namorada. Não tive seu ombro para rir e muito menos para chorar. Eu não tive você e você não me teve. Nunca fui sua e você nunca foi minha, apesar de acharmos que éramos. Apesar de tentarmos…

 

Ouvi muitos desaforos da sua boca, da mesma boca que hoje diz que me ama. Ouvi gritos de desespero por não saber lidar com a homossexualidade no quarto ao lado. Ouvi sussurros de medo e desprezo. Vi o medo evidente em seus olhos e vi a ignorância religiosa e social prevalecer. O que os outros pensam é sempre mais importante do que o que eu sinto, do que o que eu sou, do que o que eu posso ser.

 

Você, homofóbica.

Eu, lésbica.

Você, católica.

Eu, espírita.

Você, social.

Eu, antisocial.

Você, não gosta de animais.

Eu, os amo como filhos.

Você, status social.

Eu, paz e diversão.

Você, mãe.

Eu, filha.

Você, com medo.

Eu, com mais medo ainda.

Você, não quer que os outros saibam.

Eu, quero que os outros se fod…

Você, chora.

Eu, choro.

 

Nós nos amamos, mesmo tendo tudo contra nós, mesmo sendo diferentes, mesmo não acreditando nas mesmas coisas. Somos mãe e filha e devemos nos amar, certo?

 

Bom, é o que dizem…

 

Despeço-me, nesta carta secreta, com o desejo de ter tido um passado diferente e pedindo por um futuro diferente. Ainda temos tempo de nos curarmos juntas.

 

Um abraço,

Alice”

 

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2 comentários sobre “Uma carta secreta à minha mãe.

  1. Caí de repete no seu blog achei bonitinho e comecei a ler. Não pude não comentar depois dessa carta que você escreveu a sua mãe. Acho que todo lgbt já escreveu uma carta secreta aos pais pq o processo inteiro de se descobrir e aceitar é difícil demais. Eu entendo, também sou lésbica e minha família é religiosa. No começo foi muito difícil também não
    podia falar que a menina que gostava também gostava de mim, passei por um término doloroso e não chorei no ombro dela. Mas hoje tudo entre nós está muito bem em relação a minha sexualidade.
    Meus pais aceitam minha namorada e a amam também, eles a consideram como filha e eu me emociono só de escrever sobre isso. É horrível crescer no meio do preconceito ainda mais quando ele existe em você mesma, porque foram anos até eu me aceitar. Atualmente fico muito feliz por saber que minha família me ama e me apoia. Lamento pela sua mãe não saber abraçar e acolher você mas saiba que a comunidade lgbt também é uma família.

    1. Oi, Larissa!
      Eu escrevi essa carta em 2017 e atualmente tenho um relacionamento bem melhor com minha mãe. Ela evoluiu muito. Ainda tem seus preconceitos, mas ela me respeita muito mais hoje do que no dia que escrevi essa carta. Minha mãe aprendeu a conviver comigo e com minha esposa, mas ainda há muito o que ela aprender.
      Fico contente em saber que sua família ama sua namorada como filha, minha sogra também tem esse comportamento e sou infinitamente agradecida por ela me acolher tão bem.
      Que 2020 seja um ano de evoluções humanas, pois estamos precisando.
      Um abraço em você e toda sua família,
      Alice Reis

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